Estamos em um ano sabático para conhecer o mundo e a nós mesmos. Para isso manteremos nossos olhos, mentes e corações atentos e abertos por onde estivermos. Toda semana faremos um relato do que passou e por onde passamos. Como tudo na vida tem dois lados, serão duas visões sobre os mesmos momentos.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

A arte de mochilar no Sudeste Asiático

Estamos ha 4 meses no sudeste asiático e visitamos 8 países: Tailandia, Myanmar, Laos, Vietnã, Camboja, Malasia, Singapura e Indonesia. O primeiro e o último destino serviram de base para aquela parada estratégica, dar tempo ao corpo e deixar o coração se acalmar, e por isso passamos mais tempo, a maior parte descansando nas praias belíssimas de areia branca e mar de um azul sem fim. De Myanmar ao Camboja vivemos a vida como ela é, passando por todos os piores, ou melhores, perrengues de nossa volta ao mundo e nos envolvendo na simplicidade desse povo de olhos puxados e pele escura. Quando já estávamos quase pedindo arrego chegamos na Malásia e Singapura e tivemos um respiro de modernidade e primeiro mundo.

Gili Air, Indonesia, descansando a mente e o coração
Foi aqui que aprendemos a verdadeira arte de mochilar e hoje posso dizer que já somos mochileiros nível avançado. Uma experiência que quando saí do Brasil não tinha muito claro o que significava e que fomos descobrindo aos poucos, quebrando barreiras e experimentando uma liberdade de espírito como jamais tínhamos experimentado antes. Aqui não precisa de reserva antecipada, planejamento a longo prazo nem orçamento rigoroso. Em suma, é chegar, curtir, sentir e viver. Quando cansar, arruma a mochila e pé na estrada que logo ali na frente tem outro lugar te esperando.

Por do sol, Gili Air

Aqui encontramos os hotéis mais baratos de nossa volta ao mundo. Nosso recorde foi de 7,5 dólares por um quarto com banheiro privado e diga-se bem arrumadinho. Pagamos isso no Laos nas cidades de Nong Khiaw e Muong Ngoi e também em Battanbang no Camboja. Mas esse processo de abaixar o preço não foi fácil, aliás, ultrapassar a barreira dos 10 dólares foi um marco em nossa viagem. Achávamos que um quarto por menos de 10 era aquele muquifo, até nos depararmos com um chalezinho super ok em Pai, Tailandia, a esse preço. Pronto, desde então 10 dólares passou a ser a nova referência de preço. Ficamos em quartos sem janela, em banheiro do tamanho do espaço da privada (o chuveiro ficava em cima da privada), em banheiro sem agua quente, em dormitório com mais 14 pessoas. Em Hpa An, Myanmar, ficamos em uma guesthouse com quarto privativo mas banheiro compartilhado. Os quartos eram separados por paredes finas de madeira, super simples. Lá encontrei uns bed bugs (percevejos de cama, uma pulga maior e menos ofensiva) mas fingi  que não vi. Umas picadinhas no dia seguinte e nada mais. Em alguns tivemos que usar o lençol que trouxemos, tipo um saco de dormir de algodão. Sabe aqueles dias que você só quer achar um lugar pra dormir e aí vê que o lençol não foi trocado, mas você tá tão cansado que a solução mais prática é usar o saco de lençol e deixar pra resolver o problema no dia seguinte. Só que aí, depois da primeira noite, você se acostuma e não quer perder tempo arrumando a mochila, andando atrás de outra guesthouse e deixa pra lá... Mas também tivemos momentos de caixa 2 que aproveitamos os mimos de hotel chique, aqueles que eu amo de paixão. Foi em Krabi na Tailandia para comemorar nossos últimos dias de férias e depois em Hoi An no Vietnã para começar o ano em grande estilo. Em quase todos os hotéis não fizemos reservas, anotávamos uns 2 endereços e chegando na cidade íamos atrás. Em muitos lugares, logo que chegávamos éramos abordados com ofertas de hotéis e muitas vezes os contratamos. E ainda ganhávamos a viagem de tuk tuk até lá. Prático e sem complicação.

Dormitório em Singapura

Banheiro ao ar livre, Gili Air

Negociar virou uma diversão pra mim, primeiro por necessidade orçamentária mas também pela graça do processo. Eu me divertia colocando o preço lá pra baixo e ganhando alguns dólares no final da negociação. Até criamos o nosso “cofrinho” que é toda a economia que fizemos nessas negociações, não importa se é 1, 10 ou 20 dólares, todo dinheiro salvo vai pra lá. Toda negociação é aquele teatro, começa com 10, eu abaixo pra 5, ele ri da minha cara, fala que é impossível, mas faz um good price por 8, eu falo que não temos dinheiro, pago no máximo 6, ele diz que não, eu falo que vou embora e aí fechamos por 7. A maior diferença de preço foi em Myanmar, uma lembrancinha que queríamos comprar e antes de iniciar a negociação combinei com o Lucio que pagaria no máximo 4 dólares. A mulher pediu 12. Aí eu fiquei com vergonha de falar que meu máximo era 4, agradeci e fui embora. Ela insistiu para eu dar o preço e eu disse que era muito baixo e não queria depreciar o trabalho dela. Mesmo assim ela insistiu e eu falei 4. Ela disse que não. Eu disse que era o que eu podia pagar e fui embora. Depois de 2 minutos ela foi correndo atrás de mim dizendo que fazia por 4. Senti que era realmente o limite dela, se ela ganhou foi muito pouco. Diferente sensação tive na Indonesia, queria comprar um short de praia e o cara disse 12 dólares. Eu disse que pagava 4. Na hora ele disse ok. Me senti lesada, achando que valia muito menos que 4. Tiveram negociações mais emocionantes, uma delas foi o tuk tuk de Siem Reap para ir da cidade até o parque de Angkor. No dia anterior tínhamos pago 12 dólares por um dia todo e naquele dia já eram 3 horas da tarde e queríamos o tuk tuk para ver o por do sol no parque. Na minha cabeça, meio dia, meio preço. Na cabeça dele, independente da hora, o caminho a ser percorrido seria o mesmo, então o preço seria o mesmo. Ele começou com 20, mas como eu já tinha a referência do dia anterior (que também foi negociada), eu ria da cara dele dizendo que tínhamos pago 12 pelo dia todo e como era meio dia eu pagava 8. Ele ria da minha cara dizendo que era impossível. Eu me mantinha firme no 8, o Lucio desistiu e foi sentar para esperar o resultado final. Depois de muito rir um da cara do outro, entendi que o preço era pelo trajeto e não pelo tempo e fechamos em 10. Negociei de tudo, hoteis, tuk tuk, passeios, até o milho da barraquinha de rua.

Comer é barato, muito barato. Comida local custa uns 2 dólares. Comida western uns 6 dólares. Fried rice, fried noodle e chicken and rice tem em todos os lugares, comida simplinha feita com os ingredientes mais frescos possíveis. O melhor fried rice é da Indonesia, o melhor fried noodle da Tailandia e Vietna. Mas é no Laos que tem o melhor stick rice. Sempre terminávamos os pedidos com um “no spicy” que em geral era atendido, mas tiveram situações que provavelmente o cozinheiro não sabia distinguir o que era um sabor não spicy e aí vinha a la moda do chef. Aprendemos a duras penas que “a little spicy” é ardência nível 3 numa escala de 1 a 4. Em 4 meses podemos contar nos dedos de uma mão as vezes que comemos com garfo e faca. Aqui se come com garfo e colher, na verdade com a colher e o garfo serve de apoio. E sempre tem uma sopinha, em geral uma agua quente e salgada, acompanhando a refeição. Descobrimos também que carne com legumes é legumes com carne. Nunca comemos tanto frango e porco. E ovo, que vai por cima do fried rice ou fried noodles. Barraquinha de rua é algo que só o sudeste asiático faz por você. Comemos nos lugares mais locais, simples e baratos possíveis. Sem muitos critérios tive algumas dores de barriga, nada sério, um banheirinho e estava pronta para a janta. Só foi mais complicado na Indonesia, assim que chegamos nas ilhas Gilis elegemos um warung (estilo barraca de rua) para comer todas as noites frango frito com arroz. Na primeira noite já deu um desconforto mas fingi que não era nada. Na segunda noite também um nozinho na barriga e também fingi que não era comigo. Aí na terceira noite não teve jeito, fiquei de molho por 2 dias comendo biscoito agua e sal. Me pegou mas não ao Lucio que comeu a mesma coisa. Provavelmente a lombriga dele é muito mais forte e resistente que a minha.  

Nasi Goreng, fried rice da Indonesia, o melhor

Encontramos muitos mochileiros, principalmente da Europa e da Australia, na casa dos vinte a trinta anos viajando por uns 3, 4 meses antes de iniciar a vida adulta. Tiveram momentos que eu me enchi desses mochileiros, eram tantos que estragavam o ambiente local que eu estava buscando. Mais parecia um reduto de férias de ocidentais do que vilas isoladas vivendo a vida como ela é. Mas também tiveram momentos que eu cansei da vida como ela é, com dificuldade de comunicação, de transporte, de falta de conforto, e tudo que eu mais queria era um lugar western com ar condicionado e hambúrguer. Ainda bem que foram poucos esses momentos. 

Em toda essa andança só voamos quando não tinha fronteira terrestre e em Myanmar, que apesar de ter a fronteira os tramites ainda são complicados. De resto fomos basicamente pelas estradas poeirentas e esburacadas que não permitem velocidade acima de 60 Km/h. Os ônibus e as vans são feitos para o tamanho padrão sudeste asiático, imaginem como o Lucio não sofreu... conhecemos os famosos karaokês nos ônibus, uma TV que fica passando as musicas com letreiro em um volume nada ocidental durante a noite toda. E o que dizer das luzes coloridas e piscantes que enfeitam os ônibus? Parece uma discoteca. Agora imaginem uma viagem noturna de 15 horas, apertados nas cadeiras, com karaokê, luzes piscantes e aquele chulé pairando no ar... uma experiência.

A malandragem corre solta por aqui. Não me senti insegura em nenhum momento, longe de serem países violentos, mas existe o querer tirar vantagem de turistas endinheirados. Em geral uma pesquisa na internet para saber quanto custam as coisas era o suficiente para não cair nos golpes e buscar sempre o preço condizente. E sempre muita, muita negociação. Tivemos 2 situações de desatenção e que nos levaram uns dólares. A primeira foi na Tailandia que eu não guardei o dinheiro direito no quarto do hotel e “sumiu” 200 dólares que estavam bem escondidos no bolso da minha mochila. E a outra situação foi na Indonesia, já tínhamos lido sobre o golpe do Money Exchange e mesmo assim caímos. 1 dólar vale 12.500 rupias, é dinheiro pra caramba. O Lucio foi sozinho trocar 300 dólares e era para voltar com 3.750.000 rupias, um bolão de dinheiro. Mas o cara do exchange é tão malandro que mesmo depois que o Lucio conferiu o valor ele ainda “tomou” como num passe de mágica 1.750.000 do bolo. Fomos perceber só no dia seguinte e eu fiquei tão chateada que fui comentar com o cara do hotel se tinha algo que poderia ser feito. Ele ligou para um cara que não entendi de onde era mas parece que conhecia uns policiais e foram ele e o Lucio no exchange tentar recuperar o dinheiro. O cara que fez a troca no dia anterior não estava lá e o outro que nunca tinha visto a cara do Lucio falou “olha, não sei bem o que meu chefe fez mas eu te devolvo 1.200.000”. Como? O cara devolve, ou seja, ele realmente assume a culpa, nunca viu a cara do Lucio, não sabe quanto foi trocado e logo de cara ele devolve o dinheiro. Pasme!!! Culpa assumida!!! Saímos no prejuízo de qualquer maneira mas tivemos nossas lições aprendidas.


O sabor da inocencia, Myanmar

Mas acima de tudo é um povo simples, trabalhador, religioso e que valoriza as relações familiares. Um povo sofrido mas leve, que tem o sorriso mais fácil que já vi. As crianças são bem independentes, desde pequenas, brincam sozinhas, começam a trabalhar cedo, talvez pela necessidade mesmo. Pela primeira vez me senti tocada por crianças, de querer interagir, achar graça, ficar olhando. Aquela reverencia de abaixar a cabeça que serve para cumprimentar, agradecer e mostrar respeito já está tão incorporada em mim que vai ser difícil deixar de fazer. Assim como tirar os sapatos antes de entrar em casa, uma das coisas que vou adotar quando voltar para o Brasil. Convivemos praticamente o tempo todo com o budismo e vimos budas de tudo quanto é tipo. Me chamou a atenção que até o buda gordinho, aquele que dizem que traz felicidade, é mais feliz. Só ele sorri, os outros são magros e serenos. Mas o bonito mesmo é ver a devoção desse povo e os rituais que de fato fazem parte do dia a dia. Foi uma experiencia linda, de ver, de sentir e de viver. De ver cenários, paisagens e templos incríveis, de sentir a fé, a paz e o acolhimento e de viver momentos que ficarão para sempre em nossas memórias. 

Buda gordinho e feliz

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