Estamos em um ano sabático para conhecer o mundo e a nós mesmos. Para isso manteremos nossos olhos, mentes e corações atentos e abertos por onde estivermos. Toda semana faremos um relato do que passou e por onde passamos. Como tudo na vida tem dois lados, serão duas visões sobre os mesmos momentos.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

O meu topo do mundo

Essa é uma história para quem acredita em sonhos...

Vir para o Nepal e fazer um trekking até o campo base do Everest a 5.350 metros de altitude é um sonho que começou há 3 anos. Uma mistura de fazer algo diferente, ver paisagens surpreendentes e me desafiar foi a combinação perfeita para que essa viagem ocupasse o primeiro lugar da nossa wish list.

Desde então começamos a entender melhor como funciona esse mundo de trekking. Nos equipamos com botas e roupas especiais e saímos por aí fazendo alguns testes. Nosso primeiro trekking foi na Chapada Diamantina, lugar único no Brasil, para não dizer no mundo, mas sem nenhum efeito do frio e da altitude. Depois fomos para a Patagonia Argentina, outro lugar memorável, testamos o frio, mas ainda sem altitude. E assim fomos nos entendendo com as montanhas e pegando o gosto de caminhar no meio do seu silencio, da sua beleza e do seu poder.

Finalmente chegamos no Nepal, propositadamente no meio do nosso sabático, para garantir as melhores condições climáticas da região, após as monções e antes do inverno. Contratamos uma boa empresa de trekking local com guia e carregador de mala, nos asseguramos que nosso seguro fizesse resgate de helicóptero até 6.000 metros de altitude, tranquilizamos nossas famílias e lá fomos nós... para os 13 dias mais intensos que já vivi.

Foi sem dúvida meu maior desafio físico e mental. Levei meu corpo ao limite antes desconhecido, enfrentando os efeitos da altitude, o frio e o cansaço dia após dia. Nas montanhas não existe segunda, terça ou quarta. Ou dia 1, 2 ou 3. A dimensão de tempo é diferente, cada dia é um dia que deve ser respeitado e sentido em sua plenitude. Passava o dia caminhando e ouvindo o meu corpo. Tentando entender a dor de cabeça, a náusea, a falta de apetite, o formigamento dos pés. Tentando trazer razão quando a emoção já tinha dominado todos os motivos. Trazendo forças onde já não sabia de onde tirar. Sabia que a qualquer momento poderia parar e voltar. Mas eu não queria voltar. Também não queria chegar no limite de ser resgatada. E eu não sabia definir essa linha tênue do que era normal ou não, travando uma batalha mental que me deixou alerta durante todo o percurso.

Contemplar a beleza do lugar, andar pelas pontes suspensas, conversar com o silencio das montanhas, ver a paisagem mudando conforme a altitude vem chegando, sentir o solzinho em meio ao vento gelado, enfim, estar lá, sentindo e vivendo é uma das melhores sensações do mundo. Estava vivendo o meu sonho, mais duro do que imaginava, mais bonito do que imaginava, mais intenso do que imaginava. Era o meu sonho. E a hora era aquela.  

Dia 1: Kathmandu/Lukla a Cheplung: 2.660 metros

Inicialmente programado para iniciar no dia 26/9, começamos no dia 29/9 devido aos cancelamentos dos voos entre Kathmandu e Lukla, onde o tempo precisa estar perfeito para o pouso do avião. Nossa rotina era acordar cedo, ir para o aeroporto e torcer para que os voos estivessem regulares. O aeroporto de Lukla abre e fecha diversas vezes ao dia, então ficávamos esperando até o encerramento oficial do dia, que em geral era no meio da tarde. Voltávamos para o hotel e recomeçávamos no dia seguinte a mesma saga. No último dia, dia em que voamos, chegamos a fazer o check-in, entramos no ônibus que liga o saguão ao avião e então cancelaram o voo. Voltamos para o saguão, mais algumas horas para ver se o tempo melhorava e nada. Desfaz o check-in, recupera a bagagem e quando já estávamos no estacionamento vieram nos chamar dizendo que o voo tinha retornado. “Let’s go” foi a palavra chave pra gente sair correndo, fazer o check-in novamente e entrar no menor avião que já voei. Depois de 30 minutos, às 17h00, estávamos pousando em Lukla, a 2.800 metros de altitude, e conhecendo Jwala e Manish, nosso guia e porter, que seriam nossos anjos pelos dias seguintes.

Embarcando no aviao para Lukla

Como chegamos tarde, caminhamos somente durante 40 minutos, enquanto ainda tinha claridade. Dormimos em uma tea house, nome dado à hospedagem das montanhas e que seria nosso abrigo dos próximos dias. Em geral uma hospedaria simples, com quartos individuais e banheiro coletivo. O único lugar com calefação era o refeitório, onde passávamos a maior parte do tempo nos esquentando. Super simples, mas com tudo que precisamos durante nossa caminhada.

Dias 2 e 3: Namche: 3.440 metros

O segundo dia foi bem puxado, na verdade caminhamos o que deveríamos ter caminhado no dia anterior mais a programação do dia em si. Ainda sem ritmo de caminhada, mas com vontade de chegar lá, fizemos 7 horas entre subidas e descidas. Meu mantra do dia foi “vou ter um banho quente quando chegar, vou ter um banho quente quando chegar....” Não tive! Nem banho quente. Nem banho. Nessa noite já vesti tudo de frio que tinha levado e comecei a ficar preocupada com o frio que ainda estava por vir. À noite tive minha primeira dor de cabeça, que me acompanharia durante todas as noites até iniciarmos o caminho de volta. De manhazinha, fomos ver o nascer do sol e tive a primeira visão do Everest. Ah, é para isso mesmo que estamos aqui. No dia seguinte continuamos em Namche para aclimatar nosso corpo à altitude.

Nós 2 no dia 2, paisagem de muito verde
Primeira vista do Everest, logo de manhazinha, da esquerda para a direita, o 3 "topinho", bem no meio da foto

Dia 4: Tengboche: 3.860 metros

Conforme íamos subindo, a caminhada ia ficando cada vez mais difícil. O ar começava a faltar, o cansaço a aparecer. Depois de uma longa subida chegamos em Tengboche, uma vilazinha simpática onde tem um mosteiro budista bem famoso. Todos os dias às 15h00 tem uma cerimônia para desejar boa sorte aos viajantes. Assistimos à reza e saímos de lá abençoados.

Nossa rotina era acordar às 6h30, tomar café da manhã às 7h00, começar a caminhar às 8h00, parar para almoçar entre 11h00 e 12h00, caminhar mais um pouco e chegar no destino do dia entre 14h00 e 15h00, quando ainda tinha sol para nos aquecer. Chegando na tea house tomávamos banho de baby wiper, colocávamos uma roupa seca e todo o aparato de frio que tínhamos. Aí íamos para a sala de jantar que tinha calefação, jantávamos lá pelas 19h00 e às 20h00 já estávamos dormindo nos nossos sacos de dormir que aguentava até -20 graus. Eu sempre dormia as 4 primeiras horas direto, depois acordava com dor de cabeça e ficava dormindo e acordando meio incomodada.

Quarto da tea house. Em geral sempre tinha uma vista para as montanhas. 

Dias 5 e 6: Dingboche: 4.410 metros

Passamos os 4.000 metros de altitude. A paisagem já é bem diferente. Já não vemos mais arvores, só uma vegetação rasteirinha. As montanhas estão mais perto, mais brancas e mais bonitas. Os animais somem, entram os yaks peludos com o sininho pendurado no pescoço levando e trazendo peso nas costas.

A subida foi muito difícil. Parece que andamos em câmera lenta, tamanho é o esforço de subir. Se em Namche tudo o que eu queria era um banho quente, aqui, tudo que eu queria era chegar, só e somente. Comecei a ter náusea e falta de apetite. A partir dessa noite meu jantar se resumia a uma sopa de alho, bom para combater os efeitos da altitude. Passamos 2 dias na vila para fazer a aclimatação. No segundo dia, subimos a 4.800 e descemos novamente a 4.410. Assim que cheguei me senti exausta e muito enjoada. Não tinha forças para me trocar, não queria comer nada. Deu um desespero e comecei a chorar. Chorei de frustração porque meu corpo não estava reagindo bem. E chorei de medo, porque não sabia como meu corpo reagiria dali pra frente.

Uma das melhores paisagens da trilha, que me deu folego para continuar a dificil caminhada

Dia de aclimatação, subindo o morro, paisagem diferente, sem verde

Isso vale a pena

E mais isso... lindo!!!!

Dia 7: Lobuche: 4.910 metros

A paisagem mudou, começou a ter muitas pedras, o que dificultou mais ainda a locomoção. Muito cansada. Cada passo é um passo. Muito devagar e exigindo muito do corpo. O movimento de resgate de helicóptero é intenso, o que me fazia lembrar de onde estávamos e me deixava bastante preocupada.

Dia 8: Gorakshep: 5.140 metros – Everest Base Camp: 5.364 metros

Foi o dia mais difícil. Saímos às 7h15 e chegamos às 10h00 em Gorakshep. A programação era parar para um almoço rápido e depois seguir por mais 2 horas até o Campo Base e depois voltar em mais 2 horas.

Quando chegamos em Gorakshep não estava mais aguentando. Tinha chegado no limite do meu corpo e desabei. Chorei de cansaço. Chorei porque não aguentava mais. Chorei porque minhas pernas não me obedeciam. Chorei porque me faltava ar. E chorei porque tinha que continuar. Nessa altitude é recomendado que se durma apenas uma noite, depois tem que descer. Se não seguíssemos até o Campo Base naquela hora, não teríamos outra oportunidade.

Depois de mais uma sopa de alho seguimos adiante. O caminho para o Base Camp era todo de pedras soltas, muito difícil de andar. Qualquer pisada errada podia acabar no penhasco logo ao lado. Minha confiança estava muito baixa, andava muito devagar, fizemos em 5 horas o caminho que em geral dura 4. Estava há 4 dias sem me alimentar direito, me sentindo muito fraca e um pouco tonta. O meu mantra virou “fica bem, vai dar tudo certo”.

Fiquei com raiva do meu sonho, eu não o queria mais, ele não fazia mais sentido. E se não era mais meu sonho, eu poderia desistir, certo? Não, errado. Porque aí eu me dei conta que o sonho não era só meu, era do Lucio também. Era o nosso sonho. E eu não poderia desistir, não agora, que estávamos quase lá.

Depois de 2h30 chegamos no Campo Base da mais alta montanha do mundo, a mais de 5.300 metros de altitude. Estávamos no pé do topo do mundo, que pra mim, era o meu topo do mundo, o nosso topo do mundo. A nossa realização, o nosso sonho, a nossa coragem, a nossa determinação, a nossa felicidade. Lá em cima chorei de novo, abraçada com o Lucio. E nessa hora não precisava de palavras, cada um sabia o tamanho do seu sonho.

Caminho para o Base Camp

Colocando as bandeirinhas de boa sorte no nosso topo do mundo


Sonho e felicidade

Depois de voltarmos à tea house tomamos uma decisão importante, que foi voltar ao invés de continuar o trekking por mais alguns dias passando pela região do lago Gokyo. Se continuássemos seriam mais 4 dias a mais de 4.000 metros de altitude e o nosso objetivo, do Base Camp, já havia sido realizado.

Dia 9, 10, 11, 12 e 13: Pheriche (4.240), Tengboche (3.860), Namche (3.440), Phakding (2.610) e Lukla (2.840)

Como tínhamos comprado o pacote de mais dias incluindo o lago Gokyo, pudemos fazer a volta em 5 dias ao invés dos 3 tradicionais. Nossa rotina ficou mais leve, acordando mais tarde, andando no máximos 4 horas por dia, em um ritmo bem tranquilo. A cada dia minha condição física melhorava. Logo no dia 9, perder 1.000 metros de altitude me fez dormir pela primeira vez sem dor de cabeça. Meu apetite voltou, em dobro. Aliás a comida da montanha é muito boa, simples, bem temperada, na medida certa para alimentar a barriga e aquecer a alma. Viemos caminhando devagar, aproveitando os últimos dias nas montanhas e degustando a sensação do sonho realizado.

Chegando em Lukla. Uhuuu! Sonho realizado.

Dal Baht, prato tradicional nepales: arroz, lentinha, verdura, batata e frango

Dia 14: Lukla/Kathmandu: Voltamos no primeiro voo do dia, antes das 7 da manhã. Do avião me despedi das montanhas e dos dias de calmaria e reflexão. Chegando em Kathmandu tomei o melhor banho quente dos últimos tempos. Bebemos cerveja e comemos frango frito e batata frita. Realizados de um sonho, não somente de um, mas de dois sonhos.

Foram 13 dias caminhando uma média de 6 horas por dia. 2 banhos quentes, 1 banho morno. Sem informação do mundo e sem internet em plena eleição presidencial. Do lado da pessoa que mais amo, que me ajudou a tirar a bota nos dias que eu nao tinha mais força e que falou que "tudo bem" no meu quinto dia sem banho. Uma experiência que vou carregar para toda a vida, que me marcou de forma profunda e me trouxe a maior sensação de realização do mundo. Momentos que fazem o sabático valer a pena. Momentos que fazem a vida valer a pena.

Essa é uma história para quem acredita em sonhos. E em felicidade.

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